A imunidade do ITBI na integralização de imóveis em holdings patrimoniais: fundamentos constitucionais e o alcance dos Temas 796 e 1348 do STF
- Valletta Advocacia

- 4 de nov.
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I – O contexto constitucional e a razão de ser da imunidade
A Constituição Federal de 1988, ao disciplinar a competência tributária municipal, conferiu aos Municípios a possibilidade de instituir o Imposto sobre Transmissão Inter Vivos de Bens Imóveis – ITBI. Contudo, ao mesmo tempo, limitou expressamente essa competência. O § 2º do art. 156 estabelece duas hipóteses de imunidade constitucional:
a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital; e
a transmissão decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica. A norma constitucional acrescenta, ainda, uma ressalva final: “salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil”.
Essa redação, aparentemente simples, deu origem a décadas de incerteza. O ponto central da controvérsia consiste em saber se a condição da atividade preponderante, ou seja, a verificação de que mais de 50% da receita operacional da pessoa jurídica provém de operações imobiliárias, conforme os critérios do art. 37, §§ 1º a 3º, do CTN, aplica-se apenas às reorganizações societárias (fusão, incorporação, cisão e extinção) ou também às integralizações de capital.
Do ponto de vista estrutural e teleológico, a primeira parte do dispositivo visa impedir que o ato de integralizar capital social seja tributado, pois esse ato não representa aumento de riqueza ou circulação econômica, mas mera afetação patrimonial do sócio à pessoa jurídica. O constituinte originário buscou neutralidade econômica e incentivo à formalização empresarial, afastando o ITBI de operações que não revelam capacidade contributiva.
Já a ressalva da “atividade preponderante” tem natureza nitidamente antielisiva, voltada a coibir o uso de sociedades de fachada para aquisição e revenda de imóveis sem recolhimento do imposto. Trata-se de uma exceção restrita, não de elemento integrante da regra matriz da imunidade. Apesar disso, diversos Municípios passaram a exigir ITBI sobre integralizações de imóveis em holdings patrimoniais, alegando tratar-se de atividade imobiliária, o que gerou grande insegurança jurídica e incontáveis litígios.
II – O entendimento consolidado no Tema 796 e a gênese do Tema 1348
O Supremo Tribunal Federal enfrentou pela primeira vez o alcance dessa imunidade no julgamento do RE 796.376/SC, concluído em 5 de agosto de 2020, sob a sistemática da repercussão geral (Tema 796). A Corte firmou a seguinte tese vinculante:
“A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado.”
O acórdão, relatado pelo Ministro Marco Aurélio e redigido pelo Ministro Alexandre de Moraes, deixou claro que a imunidade não se aplica a qualquer transferência de bens ao patrimônio da pessoa jurídica, mas apenas ao valor correspondente à integralização efetiva do capital subscrito. O que exceder esse limite, por exemplo, quando o imóvel é avaliado acima do valor subscrito, é tributável pelo ITBI.
Essa definição solucionou o aspecto quantitativo da controvérsia, delimitando o alcance da imunidade até o montante do capital social. Todavia, o voto do Ministro Alexandre de Moraes trouxe uma observação que, embora formulada em obiter dictum, reacendeu o debate sobre a abrangência da ressalva constitucional. O Ministro afirmou expressamente que o inciso I do § 2º do art. 156 contém duas hipóteses autônomas de imunidade, uma referente à realização de capital e outra às reorganizações societárias, e que a exceção final (atividade preponderante) “nada tem a ver com a imunidade referida na primeira parte”.
Essa distinção entre as duas partes do dispositivo passou a ser invocada por contribuintes e pela doutrina especializada para sustentar que, nas integralizações de capital, a atividade preponderante da empresa é irrelevante para fins de ITBI, bastando que o imóvel seja efetivamente utilizado para integralizar o capital subscrito.
Em razão dessa divergência, o Tribunal de Justiça de São Paulo selecionou um novo recurso extraordinário como representativo de controvérsia: o RE 1.495.108/SP, relatado pelo Ministro Luís Roberto Barroso, submetido ao Plenário do STF sob o Tema 1348. A questão constitucional foi enunciada de modo preciso:
“Definir se a ressalva constante da última parte do art. 156, § 2º, I, da Constituição, referente à atividade preponderante do adquirente, condiciona ambas as hipóteses de imunidade do ITBI ou apenas a segunda, relativa às transmissões de bens decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica.”
O voto do relator, ao reconhecer a repercussão geral, enfatizou que a controvérsia é puramente constitucional, sem necessidade de exame probatório, e recordou que o precedente do Tema 796 limitara-se ao valor do capital social, não à discussão sobre a atividade preponderante.
Nos votos já proferidos no Tema 1348, cujas transcrições constam dos autos, há tendência de afastar a aplicação da condição da atividade preponderante às integralizações de capital, alinhando-se ao entendimento indicado no obiter dictum do Ministro Alexandre de Moraes. Essa orientação reflete uma leitura sistemática do art. 156, § 2º, I, segundo a qual a cláusula restritiva final diz respeito apenas às operações societárias subsequentes, em que pode haver efetiva transferência patrimonial entre entes jurídicos distintos.
O julgamento, entretanto, ainda não foi concluído. Até a conclusão definitiva, prevalece a tese do Tema 796, que assegura imunidade apenas até o valor do capital integralizado, independentemente da natureza da atividade da pessoa jurídica, ressalvado o debate sobre a aplicação da exceção final.
III – Perspectivas jurisprudenciais e efeitos práticos sobre as holdings patrimoniais
O desfecho do Tema 1348 é de alta relevância prática para o direito empresarial e sucessório. Caso o Supremo Tribunal Federal confirme que a atividade preponderante não se aplica às integralizações de capital, a consequência será a consolidação de uma imunidade plena e objetiva para essa modalidade de operação, limitada apenas pelo valor do capital social.
Essa orientação harmoniza-se com o princípio da capacidade contributiva, pois a integralização não constitui acréscimo patrimonial, mas simples reorganização da titularidade de um mesmo bem. O patrimônio não “circula” entre sujeitos distintos em sentido econômico: o sócio transfere o bem à pessoa jurídica de que participa, recebendo em troca quotas representativas do mesmo valor.
Além disso, a interpretação restritiva da cláusula da “atividade preponderante” reforça a função protetiva e instrumental da imunidade: promover a neutralidade tributária nas operações de estruturação societária, sem abrir espaço para elisão indevida. O dispositivo não tem como objetivo tributar empresas com atividade imobiliária legítima, mas sim impedir que sociedades criadas exclusivamente para compra e venda de imóveis se beneficiem indevidamente da dispensa tributária.
Do ponto de vista econômico e social, o reconhecimento da imunidade na integralização de bens imóveis favorece a formalização das estruturas familiares, estimula a profissionalização da gestão patrimonial e contribui para a segurança jurídica nas sucessões. Para as administrações municipais, a definição jurisprudencial trará clareza quanto ao limite de incidência do ITBI, evitando autuações temerárias e reduzindo o volume de contencioso tributário.
Em termos jurídicos, a sistemática que se delineia é coerente com os parâmetros do Estado de Direito:
A Constituição Federal confere imunidade ao ITBI nas integralizações de capital, como garantia de neutralidade e racionalidade econômica;
O Tema 796 fixou o limite quantitativo dessa imunidade, restringindo-a ao valor do capital social integralizado e afastando-a do excedente;
O Tema 1348, em julgamento, tende a confirmar que a cláusula da atividade preponderante não afeta essa hipótese, aplicando-se apenas às reorganizações societárias (fusão, incorporação, cisão e extinção).
A consolidação dessa compreensão pacificará um campo que há décadas gera incertezas. A partir do julgamento definitivo, será possível distinguir claramente:
quando a imunidade é plena (integralização de capital até o limite do capital social);
quando é condicionada (operações societárias com atividade preponderante imobiliária); e
quando é inexistente (excedente de valor ou transferências simuladas).
O julgamento do Tema 1348 representa um ponto de inflexão na consolidação do regime jurídico do ITBI. Mais do que discutir a aplicação de uma cláusula constitucional, a Suprema Corte é chamada a definir os limites da competência municipal à luz da coerência sistêmica da Constituição.
A tendência observada nos votos proferidos, de afastar a exigência de verificação da atividade preponderante nas integralizações de capital, traduz uma compreensão amadurecida da imunidade tributária como garantia de neutralidade e funcionalidade econômica, não como privilégio fiscal. A leitura segundo a qual a ressalva final do art. 156, § 2º, I, incide apenas sobre operações de reorganização societária, e não sobre a realização de capital, restabelece a unidade lógica da norma constitucional e previne o desvirtuamento de sua finalidade.
A decisão que vier a ser proferida pelo STF não criará uma nova regra, mas reafirmará a Constituição em sua função limitadora do poder de tributar. Para o ambiente empresarial, especialmente para holdings patrimoniais e sociedades familiares, a fixação de uma tese clara significará previsibilidade normativa, coerência interpretativa e estímulo à conformidade fiscal.

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